Ao lado esquerdo do porão, bem perto da única janela que permitia que o ar imundo lá de fora circulasse no meu refujo, montei "uma tenda", toda cercada com uma lona escura onde eu costumava brincar de ser mágico, passar para o papel fotográfico tudo que era belo aos meus olhos. Cliques dos mais sutis momentos daquele eu monótono cotidiano. Um pequeno estúdio que eu costumava revelar as milhares de fotos que eu insistia incansavelmente em fotografar. Parece que foi ontem, que adentramos para o local que futuramente seria nosso refúgio, onde nós nos entendíamos, revelávamos nossas caretas, nossa estranha forma de demonstrar o que sentíamos um pelo outro, nossa sintonia que para muitos era destoante. Mãos, coxas, saliva, abraços, sorrisos, lágrimas, quase tudo, quase nada.Foi nessa tenda em que nossos corpos se encontraram pela primeira vez -lembra?-, cada curva parecia ser desenhada perfeitamente para que estivéssemos sempre juntos, ligados por cada pêlo que se ouriçava no momento em que nossa pele se encontrava. Derrubo tudo no chão, seguro firme na sua cintura e te levanto até a bancada, sentada nela suas pernas prendem meu corpo ao teu e você vai despindo cada peça de roupa do meu corpo. Fomos além, te levo ao sofá, um pouco empoeirado porém naquele momento isso era um insignificante detalhe, aquele momento foi se simplificando, culpa dessa nossa forma quase fantasiosa que temos de nos entender, aquilo parecia certo, devia ser feito e foi. Todo dia quando o crepúsculo dava seu ar da graça estávamos ali, tentando entender um ao outro cada vez mais e conseguíamos fazer isso, os dias se passavam e estávamos mais convictos que fomos gerados para acontecer na vida do outro. Naquele porão eu era completo e conseguia deixar que forças maiores, quem sabe até divinas me dominassem, eu criava meus rabiscos, minhas palavras soltas foram se formando poesia, minhas rimas e ritmos aos poucos construíam a melodia que descrevia a perfeição do nosso estado de espírito, nossa ligação inexplicável. Entendiamos como nossas almas se encontravam mesmo em meio a um turbilhão de desentendimentos, mentiras e utilização da força bruta que vinha acontecendo no lugar que eu não conseguia mais chamar de lar.
Os problemas na minha família aumentava, ela sabia disse e sempre conseguia me fazer esquecer de tudo, quando estávamos ali no porão eu me esquecia de toda aquela teia podre e miserável que minha família se tornou. Mas sabíamos que e doía admitir que o nosso futuro era breve, apesar dos nossos momentos intensos de pura prazer e carinho, esse fato acabou esfriando essa magia que acontecia entre nós dois. Com meu pai dando seus escândalos causados pelo efeito do álcool que ele nunca largou, comecei a ficar intolerante e imune as suas palavras e formas de carinho, comecei a me espelhar involuntariamente na amargura que meu pai exalava pelo bafo de cachaça. Culpa minha? Talvez. Mas começou a não dar mais certo, tudo estava desandando. Certo dia o nosso crepúsculo perfeito de todos os dias tinha um tom de cinza que nos deixou angustiado, eu percebi, você também, mas não fomos capazes de admitir isso um para o outro. Descemos certo dia ao porão e encontramos tudo em um estado de caos, ali no meio do nosso casulo onde buscávamos a nossa metamorfose encontrei meu pai caio no chão, desfalecido. Aquele foi o último dia em que nossas mãos se encontraram, com todos aqueles médicos, policias, peritos e curiosos que cercavam a minha casa fomos afastados pelo destino. Na mesma noite minha mãe resolve fugir daquele passado infeliz que escrevemos todos aqueles anos ali naquela casa. Me levando pelos braços e me fazendo prometer que nunca mais voltaria naquele lugar, desde então, nunca mais fui capaz de volta, por medo, insegurança, covardia. Pela promessa.
Mas eu estava de volta mesmo depois de tantos anos, traindo a promessa que fiz para minha mãe, traindo tudo aquilo que eu tinha construído. Um dia eu precisaria voltar, mesmo tendo certeza de que ela não estaria lá -como as vezes me esperava, sempre que me atrasava no vestiário da escola-. Não podia simplesmente apagar tudo aquilo que ela tinha sido pra mim, simplesmente por uma promessa feita para mulher que me apresentou o mundo, mundo esse onde nós encontramos e por um tempo fomos cúmplices. Mas estava feito, nossos caminhos se cruzaram e caminharam juntos, mas depois se divergiram. E talvez tenha sido o certo, talvez aquilo fosse realmente necessário. Mas estar ali era necessário, para que eu pudesse entender isso, precisava de um dia de redenção e das suas memórias, essas que confirmariam tudo. Com a visão embaçada, lágrimas salgadas que escorriam dos meu olhos, subo as escadas, pego minha bicicleta e pedalo de volta a minha realidade. O crepúsculo estava de volta, sem aquele tom cinzento e sim com aquele tom perfeito que definia nós dois, tom que um dia me fez entender o que é amar.